Cem Anos de Emendas à RO1911

ìndice:

1. A Reforma Ortográfica de 1911 (RO1911)
1.1. Simplificando o que era complicado
1.2. Complicando o que era simples
1.3. Separando o que estava unido

2. As Reformas Ortográficas de 1931 a 1990
2.1. A RO1931 - Reaproximação ortográfica com o Brasil e tentativa de emenda ao sistema diacrítico
2.2. A RO1945 - Reunificação Ortográfica Luso-Brasileira e 1ª emenda ao sistema diacrítico
2.3. A RO1973 - Reaproximação ortográfica com o Brasil e 2ª emenda ao sistema diacrítico
2.4. A RO1990 - Reaproximação ortográfica com o Brasil e 3ª emenda ao sistema diacrítico




1.A Reforma Ortográfica de 1911

Em 1911 o Governo português aprovou e decretou a entrada em vigor de uma profunda reforma normalizadora e simplificadora da ortografia, conforme proposto por uma comissão de especialistas nomeada para o efeito de que fizeram parte, entre outros, Gonçalves Viana e Carolina Michaelis. As alterações ortográficas acolhiam uma parte importante das propostas da “Bases da Ortografia Portuguesa”, de Gonçalves Viana, publicada em Lisboa em 1885.

Com as alterações introduzidas, a partir de 1911 a ortografia portuguesa deixou de ser considerada "etimológica clássica" (ou pseudoclássica, como preferem alguns) e passou a "etimológica simplificada". A ortografia do Português afastava-se da norma ortográfica francesa a adotava critérios que, na opinião dos relatores, a acercavam das “ortografias espanhola e italiana, consideradas universalmente e por todos os filólogos como as mais perfeitas entre as que adoptaram o abecedário romano, e o apropriaram às conveniências nacionais.

A RO1911, veio efetivamente simplificar a ortografia e normalizar o caos ortográfico anterior. Infelizmente, veio também trazer dois problemas: por um lado, separou as ortografias portuguesa e brasileira, até então unidas; por outro, introduziu na ortografia uma complexidade diacrítica inédita. 


Desde há quase um século que um e outro problemas têm vindo a ser atenuados por iniciativa política, com o apoio dos mais destacados filólogos portugueses e brasileiros, através de sucessivas reformas ortográficas em Portugal e no Brasil, como se mostra nos pontos que se seguem.



1.1. A RO1911 - simplificando o que era complicado

No que respeita à simplificação ortográfica, a RO1911 simplificou a generalidade dos classicismos, genuínos ou presumidos, designadamente:

- foi simplificada a transliteração dos careteres/grafemas de origem grega, ou supostamente grega ch, ph, rh, th, y que passaram a ser grafados, respetivamente, por  c/qu, f, r, t, i; exemplos: chimica>química, pharmacia>farmácia, rhetorica>retórica, theatro>teatro, systema>sistema;
Noutros casos, a mudança /y/>/i/ não correspondeu a uma simplificação da transliteração do carater grego, tratou-se apenas de eliminar falsos classicismos; exemplos: lyrio>lírio, lagryma>lágrima.

- foi eliminado o h intervocálico (ex: compehender>compreender, prohibido>proibido);

- foram eliminadas as consoantes mudas (ex.: appello>apelo, commetter>cometer).


No entanto, fazendo juz ao modelo “etimolígico simplificado” houve caraterísticas etimológicas que foram mantidas na ortografia:

- mantiveram-se as consoantes etimológicas singelas, sem cedências fonéticas, contrariando parcialmente as propostas de Viana de 1885; exemplos: geral e não jeral, representação e não reprezentação, exame e não ezame; 

- manteve-se o /h/ inicial fundamentado na etimologia; exemplos: história, humano. O /h/ inicial foi eliminado quando era usado sem fundamento etimológico; exemplos: hombro, hontem;

- manteve-se o grupo /sc/ inicial; ex.: scena, sciência. A simplificação do uso de /sc/ por /c/ inicial só veio a aconteceu pelo Acordo Ortográfico de 1931.



1.2. A RO1911 - complicando o que era simples

Sendo certo que a RO1911 veio simplificar o que era complicado, lamentavelmente veio complicar o que era simples: a diacrítica.

Antes de 1911, os acentos eram basicamente usados para:
- assinalar a vogal tónica nas palavras oxítonas (agudas). Ex.: está, alvará, e;
- eliminar dúvidas quanto à pronúncia de palavras homógrafas não homófonas (ex.: pregar/prègar, êste/este, fábrica/fabrica, secretária/secretaria).
Portanto, palavras como Antonio, Italia, lingua, seculo, artistico  não eram acentuadas por não ser necessário distingui-las de outras homógrafas. A respeito da determinação da sílaba tónica, o ortografia Portuguesa anterior a 1911 regia-se por critérios ortoépicos.

A RO1911 veio pôr fim à linearidade do emprego de acentos e a diacrítica ganhou contornos de complexidade desconhecidos na história da ortografia portuguesa. O Português escrito passou a estar repleto de acentos quase sempre dispensáveis ou redundantes, umas vezes assinalando palavras que apenas tinham uma forma de ser pronunciadas, outras vezes assinalando a regra e não a exceção.

A complexização da diacrítica ocorreu pelas formas seguintes:

- a RO1911 veio impor o uso de /s/ final na generalidade das oxítonas (agudas) então terminadas em /z/. Antes da RO1911, o emprego de /z/ final era precioso na indicação da sílaba tónica, da abertura da respetiva vogal, ou na determinação da vogal tónica em sequências de vogais que de outro modo seriam ditongos. Nesses casos, ao substituir o /z/ final por /s/, a vogal tónica passou a ter de ser assinalada com os diacríticos /^/ ou /´/.

Exemplos: lilaz>lilás, portuguez>português, poz>pôs, paiz>país.Tomaz>Tomás, e tantos outros.
Estas alterações estavam em absoluto contraponto com a pretendida simplificação da ortografia e não tinham correspondência com a tradição ortográfica há muito fixada e geralmente adotada pela imprensa, pelos dicionaristas e pelos escritores, tanto em Portugal como no Brasil.

- passaram a ser assinaladas com diacrítico todas as palavras proparoxítonas (esdrúxulas), o que incluiu as falsas proparoxítonas. Esta alteração veio forçar o emprego de acento nas palavras terminadas em ~ico, ~io, ~uo, -íssimo, -ulo, isto é, passou a ser usado um diacrítico para assinalar a regra e não a exceção; Ex: ferias>férias, agua>água, estatico>estático, elevadissimo>elevadíssimo, oculos>óculos;

- introduziu-se um sistema diacrítico complexo que pretendia auxiliar o leitor na determinação da pronuncia ou da vogal tónica em sequências de vogais, ditongos ou não ditongos.

- foi ainda criado um sistema diacrítico adicional, de todos o mais aberrante, baseado na manutenção por motivos fonéticos de algumas consoantes mudas etimológicas introduzidas artificialmente na ortografia a partir do século 16.
O legislador, consciente do problema ortográfico que estava a criar, deixou escrito no “Relatório”:  “Sabe a comissão que esta parte da reforma ortográfica é aquela que maiores dificuldades encontrará na sua execução”.




1.3. A RO1911 - Separando o que estava unido

A RO1911 foi feita totalmente à revelia do Brasil. O texto da RO1911 contém múltiplas referências às variações das pronúncias portuguesas, mas nenhum apontamento sobre as variantes brasileiras

Pela primeira e única vez na história do Português, foi implementada, e por iniciativa portuguesa, uma segunda norma ortográfica para a nossa Língua comum.

Durante mais de vinte anos continuou a ser usada no Brasil a ortografia clássica enquanto em Portugal se usava a ortografia simplificada.

Desconhece-se até hoje se os membros da Comissão ou se o Governo do tempo estavam conscientes do alcance e das consequências nefastas que a cisão ortográfica iria originar entre Portugal e o país irmão.


2. As Reformas Ortográficas de 1931 a 1990

Cedo se percebeu em Portugal e no Brasil a dimensão do problema que a cisão ortográfica tinha gerado, assim como a necessidade política, económica e académica de voltar a reunificar as normas ortográficas dos dois países. Além disso, já nesse tempo era considerado desprestigiante que o Português tivesse duas ortografias oficiais.

Nesse sentido, foram frequentes as reuniões entre representantes da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Ciências de Lisboa que visaram sempre o regresso à unidade ortográfica perdida. Essas reuniões deram origem a sucessivas reformas ortográficas nos dois países, designadamente:
- 1931, Portugal e Brasil;
- 1943, Brasil;
- 1945, Portugal;
- 1971, Brasil;
- 1973, Portugal;
- 1990, Portugal, Brasil e restantes países de Língua oficial portuguesa.

Em todas as reformas ortográficas foram sempre dados passos no sentido da reunificação ortográfica, e também em todas elas se procedeu a uma simplificação da diacrítica de 1911. Em alguns casos, a simplificação da diacrítica foi até suficiente para aproximar um pouco mais as duas ortografias.



2.1. A RO1931 - Reaproximação ortográfica com o Brasil e tentativa de emenda ao sistema diacrítico

Em 1931 foi celebrado o primeiro acordo luso-brasileiro para a unificação da ortografia, resultado da conferência interacadémica em que participaram filólogos dos dois países.

Nesse acordo, o Brasil abandonava a ortografia etimológica clássica e adotava a generalidade das alterações simplificadoras implementadas unilateralmente em Portugal 20 anos antes.

Quanto a Portugal, pela Portaria n.7117/1931, maio27, eram decretadas também algumas alterações ortográficas para aproximar os usos portugueses às concessões brasileiras.

A respeito de diacrítica, o tema era tal modo complexo que o legislador de 1931 determinou no artigo 7º da peça referida:
A acentuação gráfica será simplificada, em harmonia com a prosódia dos dois povos, e oportunamente fixada, de comum acôrdo entre as duas academias.



2.2. A RO1945 - Reunificação ortográfica com o Brasil e 1ª emenda ao sistema diacrítico

Em 1943 especialistas portugueses e brasileiros assinaram um Acordo Ortográfico visando a unificação das ortografias dos dois países. No entanto, a confrontação entre os vocabulários ortográficos produzidos em Portugal e no Brasil mostrou que permaneciam divergências. O Acordo de 1943 entrou em vigor no Brasil mas não foi aprovado pelas autoridades portuguesas.

Tentando obter novo consenso reunificador, dois anos depois especialistas portugueses e brasileiros assinaram novo acordo visando, uma vez mais, obter a reuniformização ortográfica. No preâmbulo do decreto n.35228/1945, dezembro08, que aprovou a entrada em vigor em Portugal do AO1945, pode ler-se:
[A] Conferência realizada em Lisboa, de Julho a Outubro do corrente ano [1945], entre os delegados das duas corporações [ACL e ABL], permitiu completar a obra da unidade universal da língua portuguesa, que há vinte e dois anos as duas Academias vinham laboriosamente consolidando e estabilizando

No que respeita à diacrítica, as conclusões da Conferência Interacadémica de 1931, que ainda não tinham sido aplicadas em Portugal, foram integradas nas alterações de 1945, designadamente:

"Omissão do acento agudo nas vogais tónicas i e u, quando são foneticamente distintas de uma vogal anterior e estão em sílaba terminada por l, m, n, r ou z, ou são seguidas de nh. (Exemplos: adail, Coimbra, constituinte, demiurgo, juiz, rainha.)"
"Omissão do acento agudo no i e u tónicos de palavras paroxítonas, quando precedidos de ditongo; nos ditongos iu e ui tónicos precedidos de vogal; e no u tónico de palavras paroxítonas, quando precedido de i e seguido de s e outra consoante. (Exemplos baiuca, bocaiuva, cauda; atraiu, pauis; semiusto.)"

O acordo de 1945 foi implementado em Portugal, mas dessa vez foram as autoridades brasileiras a recusar a sua adoção pois nele se previa a reintrodução nos usos ortográficos brasileiros de consoantes mudas antes eliminadas, tarefa naturalmente tão impossível como exigir a reintrodução nos usos ortográficos portugueses de quaisquer consoantes mudas entretanto eliminadas.



2.3. A RO1973 - Reaproximação ortográfica ao Brasil e 2ª emenda ao sistema diacrítico

Em 1973, e na sequência da reforma ortográfica brasileira de 1971, foi dado em Portugal um novo passo no sentido da desejada uniformização ortográfica com o Brasil. 


Uma vez mais se declarou que as alterações ortográficas buscavam
 a aproximação à ortografia do Brasil, e uma vez mais se simplificou a diacrítica herdada de 1911.

Em seguida, extratos do Decreto-Lei 31/1973, fevereiro01 (negrito nosso):

1 Com a entrada em vigor das alterações determinadas pela Lei n.o 5765, de 18 de Dezembro de 1971, o Governo Brasileiro deu um passo muito importante no caminho da unificação ortográfica, nomeadamente com a supressão do acento circunflexo na distinção dos homógrafos. Efectivamente, e segundo amostragens levadas a efeito pela Academia de Ciências de Lisboa, aquele uso chegava a ser responsável por cerca de 70 por cento das divergências entre as duas ortografias oficiais.
3 (...) Deste modo se aproximarão ainda mais as ortografias seguidas nos dois países. E não será de mais louvar a vantagem das modificações agora introduzidas, já que - também segundo as amostragens realizadas -, graças a elas, as divergências de ortografia baixarão sensivelmente de percentagem.Nestes termos:
(...)Artigo único. São eliminados da ortografia oficial portuguesa os acentos circunflexos e os acentos graves com que se assinalam as sílabas subtónicas dos vocábulos derivados com o sufixo mente e com os sufixos iniciados por z.



2.4. O AO1990 - Aproximação ortográfica ao Brasil e 3ª emenda ao sistema diacrítico

Em 2009 entrou em vigor em Portugal o AO1990.

No que respeita às alterações dos usos portugueses, o AO1990 veio eliminar o maior entrave à reunificação das ortografias portuguesa e brasileira, que, simultaneamente, foi a maior das aberrações diacríticas trazida pela RO1911: as “consoantes mudas diacríticas”.

Esta eliminação chegou com quase cem anos de atraso. Mas chegou, finalmente. E é bem-vinda.

É importante ter presente que o AO1990 é apenas um passo mais na sequência de todos os outros que foram sendo dados durante quase um século em Portugal e no Brasil, todos eles na busca da reunificação das ortografias portuguesa e brasileira perdida por decisão unilateral portuguesa em 1911.

Compete às gerações atuais honrar o trabalho meritório e a memória de todos os políticos e filólogos, portugueses e brasileiros, a maioria deles já falecidos, que se dedicaram ao longo de quase cem anos à obra nobre de engrandecimento e dignificação da nossa Língua. Entre eles, uma menção especial para o grande filólogo português, Lindley Cintra.



RCR, 2013fev

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